Publicado em 20 de setembro de 2025 às 17:12
Jornada de trabalho exaustiva, pressão por prazos, solidão... Essa é a rotina da maioria dos caminhoneiros no Brasil. O resultado é que muitos deles acabam adoecendo. Caminhoneiro autônomo, Emerson André, conhecido como Facebook, está na estrada há 16 anos e, como muitos colegas de profissão, passa longos períodos longe de casa.>
“Tem muitos motoristas ficando doentes, porque o estresse do cotidiano, o trajeto se tornam cansativos, a família cobrando que você não está em casa, você perde muita coisa da sua família”, lamenta o motorista.>
Enfrentar a solidão e manter a calma nem sempre é fácil. Há 27 anos, Daniel Francisco de Lima, o Del Caminhoneiro, roda pelas estradas do país. Como autônomo, ele tem o próprio caminhão, mas também presta serviço a uma empresa. Del avalia que a tensão é constante. Mas quem tem muito tempo de estrada, como ele, aprende a dominar também momentos de raiva ou tensão.>
O procurador do Trabalho da 24ª Região Paulo Douglas de Moraes destaca que a saúde mental já é reconhecida como problema estrutural da cadeia logística do transporte rodoviário. Segundo ele, isso provoca um fenômeno apelidado de “apagão de motorista”, o que significa que a categoria está envelhecendo, e os mais jovens não se interessam pela profissão. A média de idade desses trabalhadores é 46 anos. "Boa parte dessa falta de mão de obra no setor está associada a uma perspectiva negativa e de ordem subjetiva, de ordem mental, em relação aos profissionais", explica o procurador.>
Ele diz ainda que são vários os obstáculos, principalmente os decorrentes do interesse econômico. “Nós temos um país que depende do modal rodoviário, que movimenta boa parte do PIB [Produto Interno Bruto] brasileiro, o que leva também a um interesse político muito forte." Moraes alerta que esses dois aspectos combinados acabam fazendo com que questões importantes, como a redução substancial da jornada dos trabalhadores, não avancem.>
Uma pesquisa do Ministério Público do Trabalho (MPT) mostra que a falta de definição na carga horária dos caminhoneiros e a instabilidade financeira criam insegurança para esses profissionais, impactando na saúde mental deles.>
Segundo o procurador do Trabalho, os dados revelam que 50,49% dos motoristas ganham por comissão e 43,7% trabalham com carga horária indefinida. O caminhoneiro Emerson André é um dos que trabalham por comissão.>
"Setenta por cento do pessoal é comissionado. Sou comissionado, com 10, 11, 12, 13% [do valor do frete]. Aí tem uma carteira lá só pra assinar mesmo. Às vezes, tem direito a férias, décimo terceiro. Mas a maioria é comissionado. Se você não trabalhar, você não produz, você não ganha", diz o caminhoneiro.>
Quando se fala de sobrejornada, o procurador Paulo Douglas de Moraes acrescenta que 56% dos caminhoneiros trabalham entre nove e 16 horas, e quase 25%, mais de 13 horas por dia. A pesquisa indica que 43,7% têm um intervalo entre um dia e outro de trabalho menor do que oito horas.>
Pela lei, deveriam ser 11 horas de descanso diário a cada 24 horas, uma pausa de 30 minutos a cada cinco horas e meia de direção, e o direito ao repouso semanal remunerado de 24 horas.>
Sono e uso de drogas>
Outro levantamento do MPT, feito no final de 2023, revela que quase 27% dos motoristas testados utilizam com frequência drogas para poder trabalhar e conseguir dirigir por mais de 12 horas.>
O coordenador-geral de Segurança Viária da Polícia Rodoviária Federal (PRF), Jefferson Almeida, diz que a fiscalização constata o uso grande de drogas e dos chamados rebites para burlar o sono, sendo considerável o consumo de inibidores de sono e, muitas vezes, de drogas mais pesadas como cocaína.>
Para Alan Medeiros, relações institucionais da Confederação Nacional dos Transportadores Autônomos, é preciso oferecer a esses profissionais mais pontos de paradas ao longo da rodovias. Outra opção são os postos de combustíveis, mas o problema é que muitas vezes esses estabelecimentos estão lotados ou trabalham com “venda casada” – o motorista tem que abastecer para ficar no local.>
Outro risco é que, quando decide dormir no caminhão, o motorista pode sofrer um sequestro ou ter a carga roubada.>
Del Caminhoneiro defende condições para que se possa cumprir a lei. "Tem que ter uma boa estrada, tem que ter lugar de descanso. Querem cobrar descanso dentro da lei, mas não te oferecem essa situação", critica.>
Vulnerabilidade emocional>
Doutora em psicologia pela Unisinos, a pesquisadora Michelle Engers Taube teve como tema de mestrado a saúde mental dos caminhoneiros.>
A pesquisa mostra que a chance de o profissional ter transtornos mentais comuns, como ansiedade, depressão e estresse, é três vezes maior quando a jornada de trabalho é acima de 12 horas, em comparação com o motorista que dirige menos tempo. Os longos períodos longe da família também pesam muito na saúde mental do caminhoneiro.>
Um em cada cinco profissionais de frotas e logística apresenta algum nível de vulnerabilidade emocional, de acordo com levantamento feito pela plataforma de gestão de saúde psicológica Moodar. Isso representa 20% dos profissionais.>
Representante da Associação Brasileira de Medicinal do Tráfego (Abramet), o psiquiatra Alcides Trentin Junior afirma que os caminhoneiros precisam ser avaliados e monitorados de maneira periódica com o entendimento de que o ambiente em que vivem exige elevado grau de atenção e uma estabilidade mental muito grande. O médico alerta que a ansiedade e a depressão aumentam o risco de acidentes.>
Para o psiquiatra, o papel do Estado é fundamental no sentido de garantir estradas sinalizadas, com boas condições de tráfego, e políticas públicas que realmente contribuam para que "a atividade seja exercida de uma maneira mais saudável".>
Saúde e segurança no trabalho>
As diretrizes de saúde e segurança no trabalho estão previstas na Norma Regulamentadora nº 1 (NR-1), do Ministério do Trabalho e Emprego. A norma passou por atualizações, em vigor desde maio. Uma das mudanças é que as empresas as empresas devem garantir um ambiente de trabalho psicologicamente saudável. Elas têm prazo de um ano para se adequar.>
A neurocientista Barbara Lippi, fundadora da Moodar, empresa que trabalha com segurança psicológica, explica que a atualização da norma inclui a obrigatoriedade de todas as empresas do país identificarem os riscos psicossociais que seus trabalhadores correm.>
Segundo ela, isso significa que não basta apenas cuidar da parte física e prevenir acidentes. Agora, as empresas também precisam olhar para os fatores que afetam o bem-estar psicológico, como estresse, fadiga e sobrecarga.>
“É importante diferenciar. Não estamos falando da saúde mental do indivíduo, de cada colaborador; mas sim, dos riscos do ambiente de trabalho que podem levar ao adoecimento coletivo”, alerta a neurocientista.>
O procurador do Trabalho Paulo Douglas de Moraes avalia que a atualização da norma reguladora e a Convenção 190 da Organização Internacional do Trabalho (Convenção sobre a Eliminação da Violência e Assédio no Mundo do Trabalho), em processo de ratificação pelo Brasil, trazem um novo olhar para questão da saúde mental. Ele ressalta que o transporte rodoviário é objeto da atenção do Ministério Público do Trabalho, por ser “a atividade que hoje, infelizmente, figura em primeiro lugar entre acidentes de trabalho com morte no Brasil”. O procurador diz que o MPT vai intensificar a abordagem da saúde mental também nesse segmento.>
No caso dos caminhoneiros, por exemplo, a fadiga causada por longas jornadas na estrada não afeta somente a qualidade de vida do profissional, mas também aumenta o risco de acidentes. Na opinião da neurocientista Barbara Lippi, quando a empresa atua para reduzir essa sobrecarga, ela também está cumprindo a NR-1 e, ao mesmo tempo, promovendo mais segurança nas estradas.>
Alan Medeiros, da Confederação Nacional dos Transportadores Autônomos, diz que outra questão a ser observada é que, em geral, os caminhoneiros não gostam de se expor emocionalmente. “É comum a gente perceber queixas relacionadas a problemas físicos, dores nas costas, por exemplo, questões de obesidade. Mas, quando a gente trata de problemas psicológicos, há uma espécie de blindagem no caminhoneiro porque ele não quer demonstrar fragilidade.”>
Para o psiquiatra Alcides Trentin Junior, a sociedade minimiza os danos de se dirigir por longos períodos.>
“Dirigir como motorista profissional com essa jornada de trabalho precisa ser enxergado como uma profissão penosa, pelo estresse físico, químico, biológico e mental que o motorista sofre por tantas horas dentro de um veículo”, afirma o psiquiatra.>