Publicado em 12 de outubro de 2025 às 07:11
Dias antes da procissão, Belém já começa a viver o Círio de Nazaré de outra forma: não apenas nas romarias e nas promessas, mas no cheiro. O perfume da maniçoba fervendo invade lentamente os quintais, os becos e os corredores dos mercados. É o primeiro sinal de que o “Natal dos paraenses” está chegando, uma celebração onde fé e sabor caminham juntos.>
No segundo domingo de outubro, mais de um milhão de devotos tomam as ruas da capital paraense. A multidão segue a Imagem Peregrina de Nossa Senhora de Nazaré em procissão, entre cânticos, lágrimas e flores. Quando a Berlinda chega à Basílica, a cidade inteira se prepara para outro momento de comunhão: o almoço do Círio, quando famílias e amigos se reúnem para agradecer e celebrar.>
A maniçoba de Vânia Morena: 15 dias de fé e paciência>
Entre as histórias que nascem desse costume, está a de Vânia Morena, vendedora ambulante que transformou a maniçoba em missão de vida. “Tudo começou quando eu era criança. Minha mãe era ambulante e levava a gente pra vender no Círio. Ela fazia a maniçoba mesmo sem comer, só por tradição”, relembra, com voz firme e orgulhosa.>
Hoje, ela é quem comanda o fogão da barraca “Delícia da Morena”, onde o prato típico é o carro-chefe. “Essa maniçoba é receita da minha mãe. O segredo é cozinhar com amor. Quem gosta de cozinhar, como eu gosto, sabe que o resultado sai perfeito”, conta, enquanto mexe a grande panela que ferve há dias.>
Mas preparar a maniçoba não é simples. Segundo Vânia, o processo leva 15 dias, tempo necessário para que a maniva, folhas da mandioca-brava moídas, perca o ácido cianídrico, substância tóxica que só desaparece após longo cozimento. “Ela vai cozinhando até ficar bem negrinha, não é pretinha, é negrinha. Só depois eu começo a colocar as carnes: charque, bacon, calabresa, bucho, orelha e pé de porco… mas não posso contar tudo, né? Tem segredo aí”, brinca.>
Fé que se cozinha lentamente>
A maniçoba é muito mais que um prato. É memória viva, herança passada de geração em geração. Cada família tem o seu jeito de fazer, o seu tempero, a sua história. E mesmo nas casas que não participam das romarias, o cheiro do prato se mistura com a oração.>
“Eu acho que o Círio é isso: união. A gente cozinha, trabalha, mas também agradece. O cheiro da maniçoba é um jeito de dizer que a fé tá viva dentro da gente”, explica Vânia, emocionada.>
A professora e gastróloga Giselle Arouck, da Universidade da Amazônia (UNAMA), lembra que a culinária é um espelho da formação cultural do Pará. “O almoço do Círio é um exemplo de sincretismo. A mistura entre ingredientes indígenas, como a mandioca e o tucupi, e técnicas trazidas por portugueses e africanos formou uma cozinha única, que traduz a alma amazônica”, afirma.>
A mesa como ponto de encontro>
O almoço do Círio é celebrado como o grande reencontro anual dos paraenses. Depois da procissão, as famílias se reúnem em torno da mesa, onde pratos tradicionais como o pato ou frango no tucupi, o tacacá e as sobremesas com cupuaçu dividem espaço com a maniçoba. “É quando a gente senta pra partilhar mais do que comida, partilha amor, memória e gratidão”, define Vânia.>
Para muitos, esse é o verdadeiro clímax da festa: o instante em que o silêncio da fé dá lugar à conversa alegre, ao barulho dos talheres, ao sabor da herança que atravessa séculos.>
De panela em panela, a identidade de um povo>
A força do Círio não está apenas na procissão monumental, mas na continuidade silenciosa das tradições que o sustentam, como a maniçoba de Vânia, que ferve pacientemente antes mesmo de a corda tocar as ruas. “Espero que esse ano seja de muitas bênçãos. Que a gente cozinhe, venda, viva e celebre. O Círio é para isso: pra renovar a fé da gente”, diz ela, sorrindo.>
A cada colherada do prato, o Pará se reconhece: no sabor forte, no trabalho paciente e no amor que transborda de uma panela fumegante. Porque, no Círio, cozinhar também é rezar, e cada maniçoba, como a de Vânia Morena, é uma oração servida à mesa.>