Publicado em 12 de maio de 2023 às 17:54
Os traficantes que dominam as favelas de Parada de Lucas, Vigário Geral e outras três comunidades na Zona Norte do Rio de Janeiro fizeram referências bíblicas como seus principais símbolos.>
A facção se intitula 'Tropa de Arão', uma figura cristã, irmão de Moisés. A estrela de David foi espalhada em muros e bandeiras nas entradas das favelas, e está até em um neon no alto de uma caixa d’água na comunidade Cidade Alta.>
Conforme a polícia, o território foi renomeado como 'Complexo de Israel' pelo chefe da Tropa, uma referência à 'terra prometida' para o 'povo de Deus' na Bíblia.>
O grupo criminoso comandava inicialmente o tráfico em Parada de Lucas e estendeu seu domínio para as comunidades vizinhas. Atualmente, a Tropa controla o tráfico nas favelas de Cidade Alta, Pica-pau, Cinco Bocas e Vigário Geral, é o que diz a polícia e centros de pesquisa em segurança pública.>
O Complexo de Israel é emblemático de um fenômeno que alguns pesquisadores têm chamado de 'narcopentecostalismo', não apenas o surgimento de traficantes que se declaram evangélicos, mas a forma como isso influencia a atuação das facções na disputa por territórios no Rio de Janeiro.>
'O termo neopentecostalismo tem sido empregado por diversos pesquisadores que analisam o fenômeno de narcotraficantes que assumem, de forma explícita e aberta, religiões neopentecostais, inclusive em suas atividades criminosas', explica a cientista política Kristina Hinz, pesquisadora do Laboratório de Análise da Violência da UERJ (Universidade Estadual do Rio de Janeiro) e doutoranda na Free University, de Berlim.>
Segundo os pesquisadores, além da conversão pessoal, a religião também tem um papel estratégico para manutenção do poder e na disputa por territórios.>
A comunidade evangélica tradicional rejeita fortemente a ideia de que um traficante possa ser evangélico.>
Carlos Alberto, que atua como pastor há 17 anos na favela da Cidade de Deus diz que 'um pastor sério não vai aceitar que uma coisa que é ilegal na lei humana e imoral seja associada a Cristo', e antes era, ele próprio, traficante. 'O pastor tem que mostrar para a pessoa que ela pode se arrepender, mas para ser aceito como evangélico ela tem que largar tudo que é contrário aos princípios bíblicos, morais e éticos', diz. >
No entanto, os traficantes considerados parte do neopentecostalismo não só se declaram membros na religião, mas de fato têm uma vida religiosa, apontam pesquisadores.>
O líder do tráfico no Complexo de Israel é alvo, por exemplo, de 20 mandados de prisão por homicídio, tortura, tráfico, roubos e ocultação de cadáver. Ao mesmo tempo, ele se declara evangélico, espalhou referências religiosas pela região e tem amigos pastores, aponta a polícia.>
'São traficantes que ao mesmo tempo participam da ‘vida do crime’ e da vida religiosa evangélica, indo a cultos, pagando o dízimo e até mesmo pagando por apresentações de artistas gospel na comunidade', afirma Kristina Hinz.>
Essa influência de religiões sobre as dinâmicas de poder do tráfico sempre existiu, dizem pesquisadores, e não é algo particular ao protestantismo. Mas a conversão de traficantes ao pentecostalismo é um fenômeno que tem características próprias, em um país que caminha para ter maioria evangélica na próxima década.>
Para a população das favelas, as igrejas pentecostais passaram a ter uma importância significativa. As redes evangélicas oferecem segurança e apoio material, espiritual e psicológico para os moradores, aponta a pesquisadora Christina Vital Cunha em Oração de Traficante: uma etnografia.>
Foi neste contexto que se deu a aproximação dos traficantes desta religião, diz o sociólogo Doriam Borges, professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).>
'Essa conversão ocorreu tanto pelo fato de parte dos traficantes terem nascido em lares evangélicos ou por terem familiares religiosos, bem como por estarem internados no socioeducativo ou em prisões e terem sido alvo dos projetos missionários evangélicos nessas instituições', explica.>
Se a linguagem religiosa é familiar para a população, a rejeição da ideia de que traficantes possam ser de fato cristãos é muito forte na comunidade evangélica mais tradicional, como explica a pastora e pesquisadora Viviane Costa, autora de Traficantes Evangélicos.>
Alguém que vive do crime, nessa visão, não cumpriria os 'requisitos de uma verdadeira conversão', diz ela.>
Para muitos cristãos, 'ser evangélico' não significa só aderir às crenças da religião, mas ter atos e um estilo de vida de acordo com certos preceitos, explica o sociólogo Diogo Silva Corrêa, autor do livro Anjos de Fuzil, resultado de sua pesquisa sobre as relações entre o crime e a religião na Cidade de Deus, favela na Zona Oeste do Rio.>
Ou seja, para alguém ser evangélico, não basta acreditar, é preciso viver de uma certa forma, a ideia de um criminoso evangélico seria, portanto, inaceitável.>
'Se a pessoa não procurar mudar, não tem como se intitular cristão, e isso vale para todos, para o adúltero, para o brigão, para quem tem vício, não só para o traficante', diz o pastor Carlos Alberto, de uma igreja neopentecostal na Cidade de Deus.>
'Durante muito tempo, os evangélicos foram respeitados justamente porque não existia aquela coisa de ser 'não praticante', como os católicos, o crente era até considerado chato, cafona', diz ele.>
Os pastores coniventes com o tráfico são uma minoria, defende ele, mas é algo problemático porque é uma minoria que 'tem forte influência sobre o rebanho'.>
A pesquisadora Viviane Costa, no entanto, é contra falar em 'narcopentecostalismo'. Ela diz que isso passaria a ideia de que a religião só passou a ser um fator importante na dinâmica de poder do tráfico com o surgimento dos traficantes evangélicos.>
Na realidade, 'a religião está presente na dinâmica do tráfico desde a sua gênese'. Ela defende que o mais correto seria falar em 'narcorreligião', diz ela.>
Nas décadas de 1980 e 1990, as facções do narcotráfico eram amplamente associadas a religiões afro-brasileiras, como o candomblé e a umbanda, diz Doriam Borges.>
Isso foi, inclusive, retratado no cinema: a passagem no filme Cidade de Deus em que o traficante muda de nome após ter o corpo fechado em um ritual religioso é uma das mais conhecidas.>
'Dadinho é o c*, meu nome é Zé Pequeno!', diz o personagem, antes de atirar em outra pessoa.>
Os traficantes construíam murais e altares em seus territórios, destaca Costa.>
'Em alguns casos, quando um traficante derrubava um chefe do tráfico ou quando ia conquistar um outro território, a divindade do traficante que tinha sido derrotada também abria lugar para a divindade do que assumia. Ou seja, o elemento religioso já fazia parte da dinâmica de poder.'>
Em Oração de Traficante, Vital Cunha descreve como as pinturas de santos e entidades do candomblé passaram lentamente a ser substituídas por trechos bíblicos na favela de Acari, no Rio de Janeiro, onde ela passou mais de uma década fazendo pesquisa.>
Ou seja, a dinâmica religiosa, que já existia, passou a ser modificada para incorporar a cultura neopentecostal que surgia.>
Atualmente, a criação do Complexo de Israel é exemplo dos contornos que essa relação entre tráfico e religião assumiu, diz Kristina Hinz.>
Exemplo, aliás, que é copiado por outros traficantes: segundo a Polícia Civil, o chefe do tráfico de uma favela em Madureira, na Zona Norte do Rio, pretende tomar os territórios de rivais para criar uma grande área sob seu domínio que chamaria 'Complexo de Jerusalém'.>
Com informações da BBC Brasil>