Publicado em 26 de agosto de 2025 às 18:41
Desde o momento em que um bebê nasce e o cordão umbilical é cortado, a falta passa a fazer parte da existência humana. A separação física da mãe inaugura uma experiência que acompanhará o sujeito por toda a vida: a de que algo sempre estará ausente — seja o calor do corpo materno, a presença constante de alguém que cuide, a atenção desejada ou um amor idealizado. >
Na visão da psicanálise, a falta é tão estruturante que constitui o próprio sujeito. “Somos seres incompletos desde o início”, diz Clarice Siewert, professora de Psicologia da UniSociesc. E essa incompletude não é apenas fisiológica — por nascermos frágeis e dependentes —, mas também afetiva. >
A busca por suprir o que nos falta move nossos desejos, direciona nossas ações e molda nossos relacionamentos. “O desejo nasce da falta. Por mais que muitas vezes a pessoa sofra porque não tem o que quer, é justamente essa ausência que a faz se mover”, explica Clarice Siewert. O desejo, na psicanálise, não é fixo nem plenamente realizável e é justamente isso que nos impulsiona a seguir vivendo, buscando, criando. >
Se a falta é tão fundamental à experiência humana, por que temos tanta dificuldade em lidar com ela? Parte da resposta está na forma como somos educados — e nos valores que predominam na sociedade atual. >
Desde pequenos, muitos de nós somos pouco expostos à frustração. Pais, muitas vezes pressionados por jornadas exaustivas de trabalho e pela culpa, tentam compensar a ausência oferecendo tudo o que podem aos filhos, o tempo todo. “Existe uma dificuldade crescente em frustrar as crianças, o que prejudica o desenvolvimento da tolerância à espera e ao vazio”, observa a psicóloga. >
Esse cenário se agrava com a influência das redes sociais e da cultura da produtividade. Vivemos tempos em que o silêncio é desconfortável, o tédio é evitado e tudo precisa ser preenchido: agendas, timelines , corpos, lares. “A gente vai preenchendo tudo com uma ansiedade de que, se não estamos fazendo nada, tem algo errado. Isso gera adoecimentos, muitas vezes físicos, além de rigidez emocional”, afirma Clarice Siewert. >
Na tentativa de escapar da angústia, muitas pessoas se perdem em excesso de atividades, consumo e distrações. No entanto, o não enfrentamento da falta pode ter um preço alto: lutos não vividos, dores não expressas, sentimentos não elaborados, tudo aquilo que, se não for falado, o corpo pode somatizar. >
Apesar de toda a dor que a falta pode causar, ela também tem um lado fértil e criativo. “Para criar o novo, a gente precisa se esvaziar um pouco”, diz Clarice Siewert. A contemplação, o tédio e os momentos de pausa — tão raros nos dias atuais — são essenciais para a elaboração de ideias, sentimentos e projetos. O tempo subjetivo, mais lento do que o ritmo acelerado da sociedade, é o terreno onde nasce a criatividade. “A criação artística, por exemplo, está fora da lógica do mercado. Ela precisa de tempo, de escuta, de silêncio”, conta a especialista. >
Lidar com a falta, portanto, envolve também uma mudança de perspectiva: sair do modo reativo e aceitar o vazio como parte constitutiva da existência. Isso exige disposição para tolerar a angústia, suportar momentos de não saber, de não ter, de não ser. Ao contrário do que muitas vezes se pensa, esses espaços não significam fracasso ou improdutividade — são, na verdade, oportunidades de reinvenção. >
Entre todas as formas de falta, o luto é talvez a mais universal. Mais cedo ou mais tarde, todos somos atravessados por perdas — de pessoas, relações, empregos, fases da vida. Elaborar essas perdas é um processo essencial para manter o equilíbrio emocional.Clarice Siewert destaca que o luto não se limita à morte de alguém querido: ele pode estar presente na transição de carreiras, na maternidade, na mudança de estilo de vida. >
O problema surge quando o luto não é simbolizado, quando não conseguimos dar um nome ao que perdemos ou encontrar meios de expressar nossa dor. “Freud fala sobre isso em ‘Luto e Melancolia’. No luto, sabemos o que perdemos e podemos chorar, sofrer, reorganizar. Na melancolia, já não sabemos mais o que foi perdido, e o sofrimento se instala de forma crônica, afetando a vida como um todo”, explica a professora. >
Sinais de alerta para esse sofrimento persistente incluem o afastamento das atividades que antes davam prazer, o isolamento social e a perda do sentido da vida. Nesses casos, buscar ajuda especializada pode ser essencial. A psicoterapia, segundo a especialista, é um espaço potente para a elaboração da falta. “É onde a pessoa pode entender o que lhe falta e como ela lida com isso, repensar suas fantasias, suas ideias de mundo”, afirma. >
Não existe uma fórmula mágica para aprender a lidar com a falta. O que existe é um processo contínuo de elaboração, de reconhecimento da dor e de aceitação de que nem tudo pode — ou precisa — ser preenchido. “Não sei se ‘ensinar’ é a palavra, mas é possível, sim, aprender a lidar com isso ao longo da vida”, afirma Clarice Siewert. A psicoterapia, a arte, as conversas significativas e até o tempo de solitude são ferramentas que ajudam nessa travessia. >
Conviver com a falta não significa se conformar com a dor, mas compreender que ela faz parte da condição humana. Ao aceitar essa verdade, abrimos espaço para uma existência mais autêntica, menos baseada em compensações e mais enraizada no desejo. Porque, como nos ensina a psicanálise, é o que nos falta que nos movimenta. E é no movimento, e não na completude, que reside o sentido da vida. >
Por Genara Rigotti >