Publicado em 7 de novembro de 2025 às 12:40
Conteúdo Estadão - Um levantamento do Tribunal de Contas da União (TCU) apontou que integrantes de famílias com algum beneficiário do Bolsa Família transferiram R$ 3,7 bilhões para casas de apostas, em janeiro de 2025. O montante corresponde a 27% dos R$ 13,7 bilhões distribuídos pelo programa no primeiro mês deste ano.>
Esse envio bilionário para as bets foi realizado por 4,4 milhões das 20,3 milhões de famílias atendidas em janeiro. Ou seja, 21,8% das famílias no programa social tiveram algum contato com apostas online. Uma parte delas está criticamente endividada.>
O levantamento considera apenas sites de casas de apostas autorizadas. As bets ilegais seguem em funcionamento aos milhares, apesar de iniciativas e cobranças para derrubá-las. A associação que representa as bets foi procurada e o espaço segue aberto para manifestação.>
O estudo do TCU, entretanto, concluiu existir "elevado risco" de que contas de núcleos familiares atendidos pelo Bolsa Família estejam sendo utilizadas para fraudes com apostas e outras práticas ilegais. Por isso, o próprio tribunal faz ressalvas sobre as descobertas em relatório técnico.>
A suspeita gira em torno do fato de que 20% do universo de famílias que colocaram dinheiro em bets foram responsáveis por cerca de 80% das transferências para sites de apostas. E do fato de que houve transferências incompatíveis com a renda desse grupo, de até R$ 2 milhões em um mês.>
Das 4,4 milhões de famílias de beneficiários que gastaram com sites de apostas em janeiro, 889 mil enviaram R$ 2,9 bilhões, o que corresponde a 78% de todo o valor gasto com apostas pelos grupos familiares no Bolsa Família. Essas 889 mil famílias que concentraram os pagamentos maiores para apostas correspondem a 20% das 4,4 milhões que tiveram algum integrante apostador. E a 4,37% do total de famílias beneficiárias do programa social em janeiro, 20,3 milhões.>
O estudo feito pela área técnica do TCU também fez uma análise sobre os valores usados em sites de apostas e os comparou com a renda das famílias e com os R$ 671,91 pagos de Bolsa Família, em média, em janeiro deste ano. Das 4,4 milhões de famílias de beneficiários que tiveram algum apostador, 3,2 milhões transferiram até R$ 600 para as bets. Outras 371,7 mil usaram até R$ 1 mil, e 820,2 mil mais de R$ 1 mil.>
Neste grupo que colocou mais de R$ 1 mil em sites de apostas há discrepâncias ainda maiores. Uma única família transferiu R$ 2,1 milhões para bets no mês. Além disso, 663 famílias foram responsáveis por apostas que variam de R$ 100 mil a R$ 1,4 milhão.>
"Esses valores não estão de acordo nem com a realidade nem dos beneficiários do Bolsa Família e nem com grande parcela da população brasileira. Essa situação alerta para a possibilidade da utilização indevida de CPFs de beneficiários do programa para não somente as apostas em plataformas online como para outras fraudes e práticas ilegais", diz o relatório.>
O Estadão já mostrou que esquemas de apostas, desde o início do processo de regularização do jogo, utilizavam beneficiários de programas sociais como o Bolsa Família para abrir bets ilegais e para operar pagamentos fraudulentos.>
O relatório do TCU apresentou dados sobre o impacto das apostas no endividamento das famílias que recebem o Bolsa Família. O levantamento considerou os valores gastos com apostas, o benefício recebido, a soma de outras fontes de renda como salários e, ainda, os valores que possivelmente foram arrecadados com premiações pagas pelas bets.>
A conclusão foi a de que 2.818 famílias estão em "situação crítica" e de "alto risco social". Há ainda outras 23.397 famílias em "início de endividamento" e 774.678 com "comprometimento das necessidades básicas". Esses três perfis de endividamento somam mais de 800,8 mil que estão no Bolsa Família, têm algum jogador no seio familiar e enfrentam problemas financeiros relevantes. As classificações são baseadas em referências internacionais.>
Novamente, o estudo relativiza as descobertas ao apontar que "parte das famílias relacionadas à essas situações realizaram transferências de altíssimo valor, incompatíveis com a renda de beneficiários do Programa Bolsa Família". Ainda recorte sobre endividamento, a maioria das famílias beneficiárias que tiveram contato com apostas, 3.645.162, o equivalente 81,97% das 4,4 milhões que de alguma forma jogaram em janeiro, comprometaram menos de 2% da renda.>
Segundo as referências usadas no estudo, esse percentual reflete riscos baixos ou médios, "não impactando de forma efetiva na segurança financeira dessas famílias". O levantamento feito pela área técnica do TCU usou dados de apostas feitas em janeiro de 2025 e cruzou com as bases de atendidos pelo Bolsa Família em dezembro de 2023. É o mais amplo diagnóstico da relação dos beneficiários com os sites de apostas até agora.>
Antes, houve uma nota técnica elaborada pelo Banco Central, divulgada no fim de 2024, que indicou que beneficiários do Bolsa Família repassaram R$ 3 bilhões via Pix para empresas de apostas A metodologia foi amplamente questionada.>
O estudo do TCU se debruçou sobre o trabalho do Banco Central e fez observações negativas. O relatório frisou que a própria Secretaria de Prêmios e Apostas (SPA), do Ministério da Fazenda, ponderou durante o levantamento que aquela nota técnica não deveria ser usada como base para orientação de políticas públicas.>
A análise da Corte de Contas foi feita no âmbito de um processo aberto no TCU em outubro de 2024 pelo ministro Bruno Dantas e que ganhou a relatoria do ministro Jhonatan de Jesus. "(As bets) se transformaram em verdadeiro 'cassino de bolso' acessível a milhões de brasileiros. Esse fenômeno tem agravado o endividamento familiar, com impactos significativos na saúde e na estabilidade social, especialmente entre os grupos mais vulneráveis", frisou o relator.>
Para De Jesus, o estudo do tribunal expõe cenário que merece atenção imediata, sobretudo com relação ao risco social crítico para parcela de beneficiários endividados e à suspeita de fraudes e uso indevido de CPFs. "A constatação de que centenas de milhares de famílias vulneráveis já se encontram em risco crítico, somada aos fortes indícios de fraudes milionárias, demonstra que o impacto das apostas no Programa Bolsa Família é problema real e multifacetado", destacou.>
Fazenda estende prazo para bets barrarem quem recebe Bolsa Família>
O Ministério da Fazenda, por meio da sua Secretaria de Prêmios e Apostas (SPA), decidiu, na semana passada, estender por mais 30 dias o prazo para que as empresas de apostas se adequem à regra que as obriga de barrar cadastros de quem recebe o Bolsa Família e o Benefício da Prestação Continuada (BPC).>
As regras, publicadas em 1º de outubro, começariam a valer em 30 dias. Mas representantes das bets vinham reclamando que o prazo não era suficiente para a adequação de sistemas. A proibição imposta pela Fazenda foi adotada como forma de cumprir decisão do Supremo Tribunal Federal (STF). A Suprema Corte ordenou que o governo adotasse medidas para vetar o uso de recursos de programas assistenciais em apostas online.>
Com o adiamento, é possível que até hoje beneficiários estejam acessando sites de apostas. Como mostrou o Estadão, a proibição deve ter pouco impacto no universo de apostadores porque titulares do benefício costumam ser as mulheres das famílias. E pesquisas apontam que os homens são maioria entre os jogadores.>